A cerca de vinte quilômetros de Roma, nas margens do Lago Albano, na Itália, o papa Urbano VIII mandou construir, entre 1624 e 1626, uma mansão inspirada na antiga e esplêndida villa romana de Albanum Domitianim, construída entre os anos 81 e 96, sob as ordens do Imperador Domiciano. Mais tarde, Pio XI acrescentou o Palácio Papal e a Villa Barberini ao lado. Residência de veraneio dos papas, o Palácio de Castel Gandlofo, símbolo da vida senhoril e cultura de férias externas dos Pontífices Romanos, já hospedou 15 dos 33 papas que se seguiram desde sua construção.
Francisco, o atual líder da Igreja Católica, um jesuíta adepto aos gestos e estilo de vida simples, decidiu não utilizar Castel Gandlofo como refúgio de verão. Ele diz não admitir tamanha ostentação diante de um mundo cheio de necessidades. Sob suas ordens, o Palácio, que é parte do patrimônio inalienável da Santa Sé, o governo mundial da Igreja Católica com sede no Vaticano, foi aberto ao público e acabou se convertendo em um museu. Lá, é possível visitar o Apartamento Pontifício, a Sala do Trono, o Salão Verde – onde eram realizados os encontros oficiais – e a capela com o ícone da Virgem de Czestochowa, onde dois papas, Bento XVI e Francisco, rezaram juntos pela primeira vez, em 2013.
Entre os pontos altos desse roteiro estão os jardins de Villa Barberini, concentrados em 30 hectares. Ali estão magnólias, rosas, ervas aromáticas, carvalhos e exemplos de antigas ruínas romanas que remontam ao Imperador Domiciano. Também os jardins pontifícios servem como cenário de uma pitoresca história, que teria se desenrolado nos bastidores da transição de poder entre o agora papa emérito Bento XVI, que renunciou ao papado em 2013, e o seu sucessor, Francisco, envolvendo os famosos vinhedos do Pontífice alemão, localizados em Castel Gandlofo. Quando foi eleito papa em 2005, após a morte de João Paulo II, Joseph Ratzinger se apresentou ao mundo, do balcão central da Basílica de São Pedro, no Vaticano, dizendo ser um “humilde servo das vinhas do Senhor”. As videiras, como se sabe, fazem parte da tradição católica.
De acordo com a sommèliere e única empresária brasileira especialista em todos os tipos de bebidas, azeites e charutos, Mikaela Paim, o vinho, uma bebida milenar, nasceu antes mesmo da escrita e acompanhou a história do mundo, ganhando destaque em diversos momentos, inclusive se tornando importante em rituais religiosos. “Celebrada pelos deuses romanos e gregos e mencionada 155 vezes no Velho Testamento, foi exatamente um cacho de uvas a primeira visão de Moisés da ‘Terra Prometida’”, explica. No catolicismo, o vinho ganha papel de destaque durante a passagem da Última Ceia, onde Jesus transformou água em vinho, tomou o cálice e disse “este é o meu sangue”. “Pelo uso da bebida como representatividade do sangue de Cristo durante as missas, o vinho sempre foi protegido e necessário para a religião católica”, conta Mikaela.
E foram justamente as vinhas, essa plantação de videiras para produção de vinho, o pivô do que teria sido um mal-estar entre os dois papas. O vinhedo, doado a Bento XVI pela Coldiretti, uma associação agrícola italiana, era um dos lugares mais simbólicos do pontificado anterior. Em 2019, seis anos após ter assumido o comando da “Barca de Pedro”, Francisco teria mandado retirar as vinhas do papa alemão dos jardins de Castel Gandlofo, que lá permaneceram ao longo de quatorze anos. De acordo com o jornal italiano “Il Messaggero”, o pontífice argentino queria espaço para o seu próprio vinhedo, muito maior do que o anterior, pois ocupará quase dois hectares de terra, e cuja produção e consumo serão reservados exclusivamente para a Casa de Santa Marta, residência oficial do papa Francisco no Vaticano.
A Santa Sé se abstém de comentar sobre o caso “winegate”, que corre apenas pelos bastidores dos seculares muros vaticanos, mas teria garantido que, acima de tudo, a substituição dos vinhedos não deve ser interpretada como um sinal de qualquer animosidade do atual papa para com o ex-Pontífice. Em meio a toda essa contenda, o que fica evidente é relação extremamente profunda do Vaticano com o vinho. “O menor país do mundo, com apenas 44 hectares e 825 habitantes, em dados de 2019, tem hoje o maior consumo de litro per capita da bebida, de 74 litros, o equivalente a 105 garrafas em um ano”, explica a sommèliere. Além do uso em celebrações liturgias, há outras explicações para os elevados níveis etílicos na região: “as bebidas vendidas no supermercado do Vaticano possuem uma taxação especial, muito menor do que a praticada em solo italiano”, complementa Mikaela.
As chaves cruzadas, o símbolo do poder papal, representando as chaves do reino dos céus e da Terra, concedidas por Jesus ao apóstolo Pedro, considerado o primeiro papa, também estampam as garrafas de um dos vinhos mais célebres do mundo, o “Châteauneuf-du-Pape”. Expressão francesa que significa “O castelo novo do Papa”, sua origem está relacionada à mudança do papado para a cidade de Avignon, no sul da França, no início do século XIV. Entre os anos de 1315 e 1333, o papa João XXII ordenou a construção de um castelo ao norte da cidade para ser utilizado como casa de veraneio. A construção foi erguida em uma região rochosa, e sobre o seu terreno foram plantadas parreiras para produção de vinho de consumo do castelo, dando início à história do “vin du Pape”. A especialista em bebidas Mikaela Paim garante: “muitos religiosos, como bispos e até papas, foram proprietários de vinícolas, de forma pessoal, e não como representantes da Igreja Católica”.
De Avignon a Castel Gandolfo, de Bento XVI a Francisco, entre as idas e vindas dos mais de dos mil anos de história da Igreja Católica, é indiscutível que o vinho desempenha um papel fundamental na vida da instituição. Elemento básico da bebida, considerada santa, a parreira simboliza plenitude e vida em abundância. O vinho, ao longo dos séculos, conquistou o paladar de diversos papas, e ganhou, inclusive, uma defesa emocionada do atual Santo Padre. Em 2016, durante uma saudação a casais que celebravam 50 anos de casamento na Praça de São Pedro, no Vaticano, Francisco completou o seu pronunciamento emitindo uma declaração em favor da bebida. Segundo o líder da Igreja Católica, “não se pode encerrar uma festa de casamento bebendo chá”, e pontuou: “o vinho é necessário para uma festa”. Habemus vinum!